A NOVILÍNGUA DA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL
a novilíngua rejeita a velha fala, instaura-se uma guerra, onde o hoje pretende assassinar o ontem.
Todos acreditam saber bem os motivos para desenvolver a oratória. Costuma-se dizer neste sentido que
um bom orador possui melhores habilidades sociais, mais oportunidades na
carreira e maior poder de convencimento.
No entanto, apesar de serem
excelentes razões, elas pecam por situar a oratória na classe dos bens úteis,
isto é, aqueles que buscamos apenas pelas vantagens materiais que produzem[1].
Muito mais apropriado seria se a
encaixássemos na ordem dos bens valiosos, ou seja, daqueles que aumentam o
valor existencial de quem os possui. Caro leitor, é exatamente isso que faremos
neste artigo, onde demonstraremos que a oratória vai muito além do mero falar
bem para impressionar e convencer, pois envolve também parte relevante do
desenvolvimento moral, cultural e intelectual.
O
que é a oratória?
Antes de responder essa pergunta,
cabe apontar a distinção que Olivier Reboul, em Introdução à Retórica, faz entre oratória e retórica.
Em seus termos, a retórica seria a arte de persuadir pelo discurso, levando alguém
a crer em algo, sem necessariamente levá-lo a fazer algo. Já a oratória seria um dos aspectos persuasivos do discurso retórico,
comportando aqui coisas como os gestos do orador, o tom e as inflexões de sua
voz. Tenham todos em mente que é essa a definição adotada neste artigo.
Agora, feita às nossas ressalvas,
vale a pena passarmos pela Grécia Antiga, afinal, como Flávio Morgenstern costuma dizer, quase tudo que é bom
desemboca nos gregos, nos hebreus ou nos romanos.[2]
E aqui vai uma pequena história sobre
a oratória…
Ela não nasceu em Atenas, como muitos
costumam garantir, mas na Sicília Grega, por volta de 465 a.C, logo após um
longo período de instabilidade e guerras civis. Com a volta da paz, os cidadãos
estavam ansiosos para reaver alguns de seus bens perdidos durante a crise e,
para isto, era necessário reclamar aos tribunais.
Numa época em que não existiam advogados, cada litigante precisava ser capaz de sustentar a sua própria causa diante do júri. Foi então que certo Córax, discípulo de Empédocles, publicou uma coletânea de técnicas que, segundo ele, poderiam ser usadas para "criar persuasão". A esta arte deu o nome de tekhné rethoriké, que em tradução livre, significa a arte de bem falar.
Os primeiros retores afirmavam que a retórica, quando bem
estruturada, é capaz de convencer qualquer pessoa de qualquer coisa. De fato, é
assim que Górgias argumenta a sua utilidade, afirmando
que se um médico e um orador estivessem disputando em uma eleição quem deveria
ser o médico da cidade, venceria não o médico, mas o sofista.
Pode parecer um exagero, mas basta
olhar a modernidade para encontrar inúmeros exemplos. Quem promove as vendas
nas empresas, os engenheiros, os programadores e especialistas no assunto, ou
os vendedores e publicitários? E quanto às "democráticas" eleições?
Consagram-se vencedores os políticos mais aptos ou apenas aqueles que tiveram o
melhor marketing?
A
Retórica não seria uma arte imoral?
Se se compreende a retórica como uma
mera arte que busca, não a verdade, mas fazer com que os outros acreditem em
qualquer bobagem que interessa o poder vigente, institucional ou individual ,
então, trata-se de uma arte bastante imoral.
Não à toa, o termo sofista adquiriu conotações tão
pejorativas ao longo do tempo, pois acreditavam eles que o objetivo do discurso
não era encontrar o verdadeiro, mas dominar através da palavra. Coube a Isócrates, depois a Sócrates, Platão e
Aristóteles, a tentativa de libertar a retórica do domínio sofístico e propor
uma definição mais moral e plausível.
Dizia Isócrates, também conhecido
como o Pai da Oratória, que esta arte só seria aceitável se estivesse a serviço
de uma causa nobre e honesta. Aliás, foi além, afirmando que ela é muito mais
do que apenas uma técnica de persuasão, mas também essencial para uma boa
formação pessoal, pois aquele que aprende a organizar um discurso se torna mais
capaz de governar a própria vida. Esta ideia ecoou no tempo e foi um dos
motivos para a Retórica ser incluída no Trivium muitos anos depois.
Aristóteles também argumentou nessa
linha, demonstrando que a comunicação é um dos traços que nos distinguem dos
outros animais e que, pelo óbvio mais que ululante, seria uma vergonha não
dominá-la. Um homem incapaz de falar, segundo o filósofo, é quase como um
pássaro que não voa.
No que concerne à utilidade da retórica, o estagirista também afirmou que ela é essencial ao silogismo dialético, sendo, portanto, fundamental para a produção de novos conhecimentos. Em outras palavras, ao contrário do que afirmavam os sofistas, Aristóteles demonstrou que o discurso é perfeitamente capaz de encontrar a verdade, que a sua força consiste em ordenar.
A
importância Civilizacional da Oratória
Para além de tudo que foi colocado:
toda estrutura social só é possível graças ao dom da fala, afinal, sem o poder
de traduzir o mundo em palavras, jamais alcançaríamos a essência das coisas.
Por exemplo: a árvore é um objeto da
realidade percebida pelos sentidos, no entanto, a partir do momento em que não
vemos mais a árvore, mas pensamos nela, não estamos diante de uma coisa real e
sim de um conceito mental abstraído da realidade.
Para ficar mais claro, pense em seu
reflexo diante do espelho: existe você, mas também há a imagem que não é você,
embora corresponda exatamente à sua aparência.
Assim sendo, existe a árvore, mas
também a imagem conceitual dela.
O problema é que o conceito está
preso apenas em sua cabeça. Para comunicá-lo, você deve recorrer a três
alternativas: desenhos, imitações ou palavras.
Os desenhos até podem trazer uma
representação fiel da árvore, mas dificilmente serão capazes de comunicar algo
além do objeto representado, não dá para dizer algo tão simples e trivial como
"eu achei uma árvore muito bonita
logo ali perto do bosque".
Consequentemente, pode-se até tentar
traduzir isso com mímicas e gestos, mas o receptor da mensagem poderia demorar
tanto tempo para compreendê-la que talvez o esforço nem valesse a pena.
Logo, somente as palavras são
perfeitamente capazes de transmitir aos outros aquilo que pensamos, transformando
os nossos conceitos em termos, ou seja, vocábulos. Portanto, sem a linguagem
não é possível discutir a realidade.
Ora, se a verdade só pode ser
alcançada através da dialética, isto é, do diálogo, tem-se, deste modo, que uma
sociedade incapaz de se comunicar é uma sociedade impossível, pois toda ordem
depende de valores anteriores que a legitime.
O que é o poder? O que é o bem? Qual é a natureza do mal? O que ou quem é Deus? O que nós consideramos como família? A resposta a cada uma destas perguntas traz consequências enormes na maneira como determinada comunidade se organiza e se orienta.
Destarte, só a fala é capaz de criar
ordem. E é exatamente assim que Eugen Rosenstock-Huessy define o poder da linguagem. Ela
permite ao homem comunicar conceitos, valores absolutos e eternos, tornando-o
capaz de criar ilhas de harmonia e liberdade em meio ao caos do mundo.
Com a ordem vem a paz, pois ao invés de brigar uns com os outros, os homens discutem seus interesses, negociam preços, advogam princípios, debatem planos de ação[3]. Tudo dentro do conforto de uma zona cultural e política que estabelece leis, métodos e processos, garantindo certa previsão de comportamento e expectativas a respeito dos papéis de cada indivíduo.
A paz, por sua vez, propicia o
surgimento da tradição, afinal, como Roger Scruton bem aponta a respeito da
mentalidade conservadora: conserva-se aquilo que se ama. Ora, se a linguagem de
um povo é fonte de toda ordem, não deveria ela ser conservada? E quanto aos
valores culturais e religiosos que se desenvolvem ao redor do discurso e
promovem a formação de um ethos social, não deverão ser protegidos também?
Tudo isso é tradição, e ela só pode
ser passada adiante através do discurso. Sob este aspecto é curioso notar que os momentos em que a
tradição mais é agredida são justamente os períodos mais violentos da história. Isto acontece porque ao invés de
continuar o discurso conforme vinha sendo praticado em determinada cultura, as
novas gerações buscam impor novos sentidos às palavras com o intuito de
reformar ou revolucionar a sociedade. A este respeito, Huessy chega até mesmo a
chamar o processo revolucionário de nascimento de uma nova língua.
Não à toa, a primeira coisa que todo revolucionário busca é se infiltrar na linguagem, pois intuitivamente sabe que a mudança nos conceitos promoverá a mudança de mentalidade. E uma vez que a novilíngua rejeita a velha fala, instaura-se uma guerra, onde o hoje pretende assassinar o ontem.
Eis, portanto, a importância
civilizacional do discurso: é a pedra fundamental na qual o homem de cultura se
articula, ilumina-se e encontra
orientação e direção. Ela harmoniza os diferentes, apazigua conflitos e
permite que haja continuidade e equilíbrio entre o passado e o futuro.
Por
que desenvolver a oratória?
Finalmente podemos responder a
pergunta do início deste artigo: por que desenvolver
a oratória, ou melhor dizendo, a retórica?
Não apenas porque um homem que não se
comunica bem perde uma habilidade relevante para seu crescimento pessoal e
profissional, mas também porque abre mão de um importante aspecto
característico da sua humanidade, ou, nas palavras de Aristóteles, torna-se
menos homem.
Além disso, o homem deve falar se
quiser ter uma cultura. Deixar a linguagem de lado significa conceder os rumos
de nossa civilização ao controle daqueles que entendem o poder do discurso e
pretendem utilizá-lo para seus próprios fins.
Uma vez que toda mentira, hipocrisia
e falácia tem origem linguística, a incapacidade generalizada de manusear as
diferentes formas da linguagem promoverá, a longo prazo, a dissolução da
sociedade.
E não é exatamente isso o que estamos
observando, quase que passivamente, nos dias de hoje? Se quisermos alguma
chance de vencer essa batalha, precisamos de intelectuais capazes de formular a
linguagem, inflando as massas com aquela brisa renovada de fé e respeito à
beleza e vigor do nosso idioma.
[1] Utilizo aqui a classificação apresentada pela Irmã Miriam Joseph, no Trivium. Diz ela que existem três tipos de bens:
a)
valiosos, aqueles
que buscamos porque aumentam o nosso valor (ex.: conhecimento, virtude, saúde);
b)
úteis, aqueles
que buscamos apenas porque nos ajudam a obter outros bens (ex.: alimento,
dinheiro, livros);
c)
aprazíveis,
aqueles que buscamos em razão da felicidade que nos proporcionam (ex.: boas
amizades, felicidade, uma casa bonita e organizada).
Pode-se
ver uma ideia muito parecida na República de Platão, quando Gláucon aponta a existência de três espécies
de bens:
a)
Os que se desejam
quer por si mesmos, quer pelas vantagens que nos dão, como, por exemplo, a
saúde e a inteligência;
b)
Os que se desejam
não por si mesmos, mas pelas vantagens que nos dão, como, por exemplo, exercer
as atividades que dão riqueza material.
c)
os que se desejam
por si mesmos, como, por exemplo, a alegria e os prazeres que dão só alegria;
[2] Aliás, é engraçado notar que Diógenes Laércio vai
além e situa até mesmo o início da raça humana entre os helenos.
[3] É claro que em algumas ocasiões não
será possível dialogar. Por exemplo, diante de um assalto, pois o bandido está
longe de ser alcançado por qualquer discurso. Infelizmente, por vezes, recorrer às armas pode ser necessário para manter a
paz que tanto amamos.
Newsletter
Cadastre seu email e receba nossos informativos e promoções de nossos parceiros.
Renato Gomes - ESTÁ CHEGANDO A HORA DE A ONÇA BEBER ÁGUA...
SILVIO MUNHOZ - A CARTINHA E O ENDEREÇO ERRADO.
ÉRIKA FIGUEIREDO - UMA REPÚBLICA ITALIANA
ADRIANO MARREIROS - REPÚBLICA DEMOCRÁTICA ALEMÃ E OUTRAS “DEMOCRACIAS”...