EM LISARB...
entre o refúgio do Bom Senso, o desembarque de Hybris e o exílio de Sobrietas.

Em Lisarb, aquela republiqueta do hemisfério sul, onde a corrupção e o crime transitam com liberdade pelas ruas , há um artefato de primeira necessidade que se encontra em escassez nas prateleiras dos jurisconsultos: o Velho Bom Senso.
É certo que a Deusa Themis há tempos desistiu de aportar por lá. Porém, o Velho Bom Senso, matuto de idade avançada, vestes surradas e barbas brancas, sempre se fez presente nas prosas cotidianas; a cultuar a sabedoria da realidade colhida pelos calos de suas mãos e de seus pés.
Embora o Velho Bom Senso sempre estivesse à disposição, os acadêmicos sempre o desprezaram e se dedicavam ao culto platônico de suas personificações helenísticas: a grega Sofrósine ou a romana Sobrietas; pois seus recitais nos convescotes acarpetados sempre foram mais pomposos. Todos, porém, pregavam a mesma virtude - a temperança - em contraponto ao excesso, à arrogância, ilustrados pela figura grega de Hybris.
O desprezo ao Velho Bom Senso fez com que ele se refugiasse ao seu tugúrio, certo de que seus ensinamentos não interessavam aos “cultos”. E do alto de sua choupana, viu os excessos cometidos, muitas vezes por aqueles que deveriam resguardar o poder de suas canetas nos limites de suas togas.
Este foi o infeliz cenário observado pelo Velho Bom Senso: decisões que ora colocavam criminosos e corruptos nas ruas e nos palácios, pelos sofismas mais astutos possíveis; e ora prendiam, cassavam ou faziam calar aqueles que não aceitavam o mesmo estado de coisas. De outro lado, parte da população se inflamava, ora por instigação de oportunistas, ora por pura ignorância ou sentimento de impotência, ao presenciar a desfaçatez descortinada na pretensão espúria de alguns reescreverem a História à fórceps pelo controle das narrativas.
Em nome da “Democracia” e sob a argumentação da “exceção excepcionalíssima”, criou-se pela interpretação jurídica uma espécie de “juízo universal” a instaurar investigação judicial ao arrepio de Montesquieu, a lançar às favas regras comezinhas de competência, a determinar medidas constritivas sem delimitação do objeto e de pessoas investigadas, a prender sem acusações formalizadas a tempo e ainda a pretender silenciar meios de comunicação.
Aliás, como alertava o francês Voltaire, outro sábio ancião, há mais de três séculos: “sejam as leis claras, uniformes e precisas, porque interpretá-las, quase sempre, é o mesmo que corrompê-las”.
Assim Lisarb se afundou, distante dos conselhos dos sábios anciões, a ponto de alguns jurisconsultos publicizarem suas predileções eleitorais, ou mesmo proferirem ofensas ou difamações contra terceiros cujos atos foram por eles julgados, com a “imparcialidade” inata dos que vertem lágrimas crocodilianas, em verdadeira “cruzada” contra o Velho Bom Senso.
Nesse cenário, conta-se que, naquelas bandas, certo jurisconsulto foi ofendido em sua honra por um “igual” em terras “além-mar”. Seria óbvio dizer que a honra é bem juridicamente protegido, com meios legalmente trilhados e que deve ser punido nos limites estabelecidos. Meios e limites impostos pela Lei, apenas ela!
O estranho, no referido conto, situou-se na diferenciação que se buscou fazer entre os “iguais”. Afinal, poucas mentes brilhantes conseguiriam entender como uma ofensa propiciaria consequências distintas a depender do ofendido, e não do ato propriamente dito.
Questionaria o Velho Bom Senso dentro de seus conhecimentos bucólicos: como condenar uma maçã à prisão por ter “xingado” um abacaxi de abacate, enquanto, se o contrário fosse, pela mesma ofensa, no máximo, a “punição” a este seria um acordo de pagamento de alguns gêneros alimentícios a entidades sociais, sem qualquer hipótese de prisão?
Aliás, no teorema simplório do Velho Bom Senso, se maçãs e abacaxis fossem efetivamente iguais perante a Lei, não haveria como se cogitar sequer de qualquer punição, pois, em Lisarb, ninguém pode ser punido, em seu quintal, por meras ofensas cometidas “além-mar”.
Mas, em Lisarb é assim que o ponteiro gira, movido por alguns iluminados e a desafiar o próprio poder de Cronos. Há quem diga, naquelas cercanias, que até o passado é incerto, pois ele pertence aos mesmos marcadores de ponteiros.
Certo mesmo é que se alardeou que aquele jurisconsulto não desembarcou sozinho em seu retorno à sua terra natal. Retornou também a famigerada Hybris. E, por meio de Hybris, a investigação foi prontamente iniciada, suspeitos foram levados a depoimento, mandados de busca e apreensão expedidos diretamente pelo “último degrau de jurisdição”, e se criou ambiente a confundir, propositalmente ou não, ofensa à pessoa com personificação institucional.
Enquanto isso, Sobrietas, envergonhada, permaneceu em seu permanente exílio, incapaz de impedir a continuidade de tão vexatória realidade, enredo típico das antigas tragicomédias romanas de outrora.
Diante de tal quadro dantesco, no qual céu e o inferno se contrastam no mesmo enredo, certamente algum atrevido ousaria questionar: e a Democracia e o Estado de Direito? Bom, quanto a isso, nada precisa ser dito, pois, como bem ensina o Velho Bom Senso, em determinados momentos, o silêncio das palavras não ditas é o porto seguro dos pensamentos manifestos.
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