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Brasília,04/12/2023

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Uma Galinha...

Têm dito: “Prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém!”


Uma Galinha...


Uma galinha ciscava solitária no fundo de um quintal. Havia ali bastante espaço, até mesmo uma mangueira, que jogava deliciosas mangas amarelas pelo chão. O lugar era cercado por um alto muro, mas Isolda, este era seu nome, não desejava sair dali. Afinal, o que ela poderia desejar mais da vida? Ali tinha tudo o que precisava. Duas vezes por dia uma mulher mulata e grandalhona vinha alimentá-la jogando delicioso milho pelo quintal. A tarde vinha o Joãozinho, garoto esperto. Os dois então brincavam de Cavaleiro contra o dragão, e, claro, Isolda era o dragão. Ela até que se saía bem com aquela espada de madeira do moleque. No meio do dia, ao invés de ficar ciscando, escondia-se sob a sombra da grande mangueira, empoleirada num dos galhos. Dali para bater asas e voar para o quintal vizinho era facinho. Mas, para quê? Isolda não queria outra vida. Encontrar outras semelhantes? Que nada, sabia que eram todas esfomeadas como ela. Iria ter de disputar o milho, e sabe Deus se teria mangas, sombra, e Joãozinho... Não, Isolda era uma galinha feliz.



Às vezes aparecia um velho, muito magro, de olhos cavados, cabelos branquinhos. Só dava uma espiadinha nela e depois ia embora. Já ouvira o Joãozinho chama-lo de Vô Tonho, mas, suspeitava que o nome dele era mesmo Antônio Seguro. Ele não tinha nada de especial, só era magricela e usava roupas velhas e puídas. Mas, isso nem chegava a ser crítica, pois Isolda nem roupa tinha. Já havia sido chamada de “desavergonhada” pelo Joãozinho. Só achava estranho quando o ouvia ralhar com o menino: “João! Para de correr atrás da galinha se não ela não engorda, moleque!”  Mas até aí, ela achava que ele tinha alguma razão. Joãozinho dava uma canseira nela. Por outro lado também não queria virar uma galinha obesa, gostava das suas formas elegantes.

Tudo ia bem. Os dias se repetiam. As semanas passavam. E Isolda era menos do que gorda praticamente uma galinha atlética. Numa tarde o dragão já quase derrotava o Joãozinho. Isolda se atirou de asas abertas da mangueira e atacou ferozmente o moleque. Bicadas e mais bicadas no rosto do menino enquanto arranhava o que podia com os pés. Aí, não sabia o que deu nele, saiu gritando e chorando. E ela que já ia ficando toda prosa, pois enfim o dragão derrotara o cavaleiro: “Praga de moleque! Não tem esportiva! Não aguenta perder!” Pensava Isolda, e já aguardava o momento da desforra de João. Quando escutou vozes gritando dentro da casa. Era o seu Antônio. Pelo o que se ouvia dava pra entender que estava dando aquela bronca no menino. Claramente, Isolda ouviu apenas: “Agora, chega!” “Prudência! – gritou ele – pega a galinha!”

Em poucos instantes a mulata gorda com ares bonachões adentrou no quintal. Aí, Isolda, que não era boba nem nada, juntou as duas coisas, a mulata e a Prudência, eram a mesma pessoa. Bem, ainda estava cansada da surra que dera no moleque. A mulher não teve o menor trabalho, estendeu a mão para o alto da mangueira, puxou-a pelos pés. E amarrou-lhe firmemente as pernas com um barbante. Isolda piou e piou, de nada adiantou, foi levada assim para dentro da casa, de ponta cabeça. E se perguntando o que acontecia afinal. “Tudo culpa do Joãozinho...” pensava.

Primeiro viu a casa de ponta cabeça. Depois, Prudência deixou-a num cantinho daquilo que eles chamavam de cozinha. A mulher até que nem era de todo má, lhe falou num tom carinhoso: “Agora, você vai ficar quietinha, aí neste canto! E não faz sujeira! Em duas semanas você estará gordinha!” A única coisa que incomodava Isolda era essa estranha mania de quererem engordá-la. Será que eles não sabiam que ser gorda dá enfarto do miocárdio e pode até matar?! Aquele era um mundo novo e estranho. Não tinha mangueira, não tinha sombra, não tinha terra... Não tinha céu, e o sol ficava pendurado no teto. Agora compreendia melhor Joãozinho, lugar triste aquele.

No dia seguinte, Joãozinho deu um jeito de ir visita-la logo de manhã. Fez carinho nela e segredou ao seu ouvido: “Irei dar um jeito de tirar você daqui!” Depois pediu segredo e de camisa branca, shorts azul marinho, e caderno embaixo do braço foi para a escola. Escola Isolda sabia o que era, Joãozinho já tinha falado para ela. Um lugar muito triste onde ele tinha que ir e ficar aprisionado voluntariamente, até que alguém dissesse que podia ir embora. Aí alguém fazia ele escrever e escrever até a mão doer. E ele não podia ir ao banheiro na hora que quisesse. Além disso, às vezes levava puxão de orelhas. A única coisa boa era a merenda. Vô Tonho dizia que era para ele comer bastante para economizar em casa. A tardinha ele voltava. E iam brincar, mas agora não mais.

Isolda estava meio entediada, afinal, estava amarrada a um canto. Aí aconteceu o inusitado. Prudência, que cantara com o rádio ligado a manhã inteira, resolveu puxar papo com ela. Dizia coisas estranhas, como: “você que é feliz!” “Não tem que limpar a casa, não tem que ficar escutando aquele pão-duro do seu Tonho! E nem os seus gritos!” “Bem que você podia falar pra ele que a escravidão acabou, né?!” E assim falando, passou o dia todo contando sua triste vida para a galinha.  Isolda de vez em quando soltava um pio, como que concordando com a empregada. Às vezes a estória era tão triste que os olhos da galinha enchiam-se d’água. Como sofria aquela pobre mulher. Sem mãe, sem pai, sem amigos, sozinha no mundo, aguentando maus tratos de um velho rabugento e muquirana. Só o Joãozinho era a sua alegria. Ah! Isso as unia. Assim, meio que sem escolha, ficou sabendo que os filhos do velho foram embora por que não o suportavam. E que Joãozinho ficara órfão num acidente de carro. Só então Isolda se deu conta de que não se lembrava de seu pai e nem de sua mãe. Ficou tão deprimida pensando nisso que chegou a se questionar se não era filha de chocadeira. Mas logo afastou essa idéia da cabeça. Definitivamente sua mãe era uma galinha e seu pai um galo! Duro foi perceber que ela, Prudência e Joãozinho pareciam estar no mesmo barco. Já nem se sentia mais uma galinha feliz.

Os dias se passaram lentamente, e Isolda notou com certo horror que ela já tinha pneuzinhos. Estava engordando a olhos vistos. Seu Tonho via com satisfação os progressos, e Joãozinho ainda não encontrara a oportunidade de libertá-la. Dizia ele que deveria manda-la embora para outro lugar, onde estaria a salvo. Mas isto Isolda não queria. Agora já gostava de Prudência e se sentia parte da família. O que não gostou de perceber é que quase todos os dias eles comiam ovos. E ovos ela sabia o que eram. Ficou horrorizada. Num destes almoços, antes de quebrar um ovo, Prudência vendo a cara de terror da amiga franga. Explicou-lhe. “Estes ovos não são galados! Não tem nenhum pintinho aqui dentro!” Isolda ficou mais aliviada, mas agora ela sabia o segredo terrível daquela estranha família. Eles eram tão sozinhos e tristes por que eram canibais. Começou a temer por sua própria sorte.



Num belo domingo de manhã, Joãozinho adentrou a cozinha com um novo amigo, o Carlinhos. E, como Prudência estava perto, ele dava estranhas piscadelas para Isolda. E fazia caretas esquisitas. Ela demorou para entender aquilo, mas logo compreendeu. Este era o dia da fuga! Provavelmente, Joãozinho iria carregá-la dali com a ajuda de Carlinhos. De repente, seu Tonho entrou na cozinha. Cumprimentou o Carlinhos. E falou todo faceiro: “Prudência, minha filha! Hoje temos visita! Pode matar a galinha!”. “Matar a galinha” “Matar a galinha” aquelas palavras ficaram ecoando na cabeça de Isolda, seu coração disparou, pois ela tinha consciência de si: ela era a “galinha”. Imediatamente começou a se debater e a piar como uma desesperada. Joãozinho correu para o avô implorando que não a matasse. Seu Tonho lhe deu uma bronca, e Carlinhos enfurecido foi para cima dele. De nada adiantou, ele levou um peteleco e foi chorar em outro lugar junto com o Carlinhos. 

Prudência a agarrou pelos pés e a colocou sobre a grande e grossa mesa de madeira. Enquanto ela se debatia a empregada pegou uma enorme faca de cozinha. Prudência pensava “Vai ser de uma vez só, assim ela não sofre”. Com uma mão segurou o corpo de Isolda e com a outra levantou o pesado facão. A galinha mirava a sua guilhotina, paradinha lá no alto.Primeiro com horror. Depois seus olhos tristes se encheram de lágrimas e se despediu da vida. E pensar que eram amigas?! Mas, Prudência não baixava a faca logo. Sua mão tremia. Aí ela se virou para o seu Tonho e lhe informou: “Não tenho coragem, não! Essa galinha parece gente, cruz-credo!” “Larga de besteira! Mata logo!” ordenou o velho muquirana. Joãozinho ao escutar isso voltou correndo com Carlinhos para a cozinha. “Não mato!” disse corajosamente Prudência “Se quiser matar, mata o senhor mesmo!” E assim falando lhe deu a faca nas mãos. Seu Tonho não teve a menor dúvida, se dirigiu até a mesa levantou o facão. Neste instante Joãozinho gritou: “Pára, Vô!” E se jogou sobre o velho, que lutava contra o menino que agora era ajudado por Carlinhos. A faca continuava lentada, e o velho tentava atingir Isolda assim mesmo, um golpe na mesa passou raspando pela cabecinha dela. No meio daquela confusão Prudência se desesperou, pegou uma frigideira de ferro e deu com ela na cabeça do seu Tonho.

Ele caiu, tremeu um pouquinho no chão. Enquanto os três olhavam-no sem saberem o que fazer. Suspirou e morreu. Prudência ficou branca de medo. Levou as mãos ao rosto chorando. Joãozinho se certificara de que o avô estava morto. Enquanto a empregada desesperada dizia: “O que eu fiz! Agora vou para a cadeia”. Foi então que Joãozinho falou: “Vai nada, meu avô escorregou e caiu, não é Carlinhos?!” O amigo fez que sim com a cabeça. Prudência estava salva. Isolda, ainda pálida, de bico aberto com a situação. Ainda gostava deles, mas ficava se perguntando quanto tempo iria se passar até que desistissem de comer o avô e resolvessem que ela iria para a panela. Nem acreditou muito quando Joãozinho triunfante lhe disse: “Agora você está salva!” Soltou seus pés e a levou todo satisfeito até o quintal onde a soltou. Nos dias seguintes tudo correu sem novidades, exceto que o velho fora enterrado e ninguém suspeitara de nada, afinal duas crianças e a empregada disseram que eles o viram cair no chão da cozinha depois de escorregar. 



Logo Joãozinho voltou a brincar com Isolda, e ela voltara a ser o dragão. No entanto, agora ela dormia sobressaltada, e de noite tinha terríveis pesadelos com os canibais. Eles diziam ser seus amigos, mas, por via das dúvidas, o dragão ficara mansinho e não atacava muito o Joãozinho. Afinal, nunca se sabe...

Têm dito: “Prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém!”

“O que não disseram é que Prudência era a cozinheira e que Seguro, morreu velho, mas foi morto por causa de uma galinha.”





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